Aqui estava a igreja de Nossa Senhora, muito antiga, a argila escurecida pela idade. Por motívos sentimentais, vou entrar. Por motivos sentimentais apenas. Não li Lenin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Falando comigo mesmo nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: Li O anticristo e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatães.
Puxei a imensa porta, abri-a, e ela emitiu um pequeno grito de choro. Acima do altar, crepitava a luz eterna vermelho-sangue, iluminando em sombra carmesim a quietude de quase dois mil anos. Era como a morte, mas também me fazia lembrar bebês chorando no batizado. Ajoelhei-me. Era um hábito, ajoelhar. Sentei-me. Melhor ajoelhar, pois a pontada aguda nos joelhos era uma distração da terrível quietude. Uma prece. Certo, uma prece:
Por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo-Poderoso, vou jogar limpo nesta questão. Vou lhe fazer uma proposta. Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém.”