Me visitam

fevereiro 26, 2012


Aqui estava a igreja de Nossa Senhora, muito antiga, a argila escurecida pela idade. Por motívos sentimentais, vou entrar. Por motivos sentimentais apenas. Não li Lenin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Falando comigo mesmo nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: Li O anticristo e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatães.
Puxei a imensa porta, abri-a, e ela emitiu um pequeno grito de choro. Acima do altar, crepitava a luz eterna vermelho-sangue, iluminando em sombra carmesim a quietude de quase dois mil anos. Era como a morte, mas também me fazia lembrar bebês chorando no batizado. Ajoelhei-me. Era um hábito, ajoelhar. Sentei-me. Melhor ajoelhar, pois a pontada aguda nos joelhos era uma distração da terrível quietude. Uma prece. Certo, uma prece:

Por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo-Poderoso, vou jogar limpo nesta questão. Vou lhe fazer uma proposta. Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém.”

fevereiro 23, 2012


Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Nisto de duas pessoas julgarem que se amam tresloucadamente, de não terem mutuamente no corpo e no pensamento senão a imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois desconhecidos.
Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
Miguel Torga - Diários (1940)

Não sei se concordo plenamente, quero muito acreditar na força do tempo, mas ainda não é assim pra mim.

fevereiro 22, 2012


“Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. (…)”

E como negar uma coisa que o corpo faz questão de lembrar que existe o tempo todo?

fevereiro 16, 2012


A vida acaba afinal, não vale mesmo a pena ficar aqui pensando muito no fato de ter escolhido errado na hora do vestibular, já se passaram quatro longos e dolorosos anos, agora é só pegar o canudo e ir em frente como eu sempre fiz, não importa se mais uma vez der tudo errado, as coisa deram certo de certa forma e deve ter sido inspirador para alguns.
Amor, amigos, esses apareceram e se foram como tudo, são no máximo e com dignidade oitenta anos de vida, nada mais do que isso, talvez um quarto já tenha passado, os outros devido a larga experiência não deve ser muito diferente, vide todas as semana de férias que tive, não mudaram em nada minha vida nem a de ninguém. A vida é curta, rápida, não vale a pena pensar quem será mais ou menos feliz do que eu, se é que serei feliz algum dia ou se é que que já houve alguém feliz.

"Porque felicidade é calma. Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo."


“Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? Este mundo é muito misturado.”

Eu preciso muito que meus amigos sejam meus amigos a qualquer custo, com qualquer humor que eu pussua, que meu inimigo me detestem a qualquer custo, que não me estendam a mão quando eu cair, que quando eu apontar o dedo em direção a alguém seja esta a exatamente aquilo que eu julguei, preciso que o caminho tenha somente duas opções o real e o irreal, que eu saiba sempre distinguir entre os dois, eu quero o impossível.